José Maria Eça de Queiroz – Uma partida feita ao Times

É ao mesmo tempo lamentável e picaresco o caso sucedido ao Times. Este nobre in-fólio diário, que inspira orgulho a todo o inglês sinceramente patriota e que aos olhos respeitosos do estrangeiro aparece como uma das mais fortes colunas da sociedade inglesa, como a própria consciência da Inglaterra posta em letra redonda; este augusto periódico que nunca, desde a sua fundação, citou o nome de um colega, nem jamais se baixou a uma controvérsia, pelas mesmas razões de inflexível etiqueta que vedariam a Luís XIV argumentar com Colbert; esta austera gazeta que preferiria despedaçar as suas magníficas máquinas a consentir que elas imprimissem um bon-mot, uma pilhéria, uma linda bagatela ou uma jovial anedota; este papel tão pudico que evita o nome de Zola, como uma indecência – o Times, enfim, o venerando Times, foi ultimamente vítima de uma dessas «partidas», como nós dizemos, «facécias em acção», como dizem os Americanos, que são ao mesmo tempo nefandas e patuscas, que nos abrasam a face de indignação e nos arrancam aos lábios um sorriso, que nos fazem vituperar publicamente o farsante e saborear secretamente a farsa, como se víssemos um rabo de papel pregado ao manto de el-rei, ou sobre os cabelos em caracóis da imagem do Senhor dos Passos enterrado um chapéu alto.
Todas as pessoas que têm folheado esses vastos lençóis de matéria impressa que constituem um número do Times sabem que a quinta página é ordinariamente destinada à publicação dos discursos pronunciados por homens eminentes da política, da literatura, da ciência, da arte, em meetings, comícios, banquetes, inaugurações, conversazioni, em todos esses ajuntamentos de ladies and gentlemen onde a Inglaterra dá vazão ao seu tumultuoso fluxo labial!… O Times é famoso por estas reproduções. Não são resumos nem extractos: são as arengas, palavra a palavra, especialmente taquigrafadas para o Times por um pessoal experimentado, com as interrupções correctamente transladadas, os murmúrios religiosamente marcados, sem que lhes falte um «meus senhores!», sem que ficasse perdido um «oh!» ou um «ah!», e revistas, esmiuçadas, zeladas como se tivessem caído dos lábios de Sócrates ou de Cristo pregando outro Evangelho.
Este simples serviço custa por ano ao. Times milhares de libras – mas dá-lhe a vantagem de ser ele a acta oficial do verbo público da Inglaterra. Todos os jornais da Europa assim o reconhecem: quando se discute um discurso do Sr. Gladstone, uma conferência do professor Huxley ou uma prédica do arcebispo de Cantuária tem-se presente, como texto sagrado, o texto do Times. Um orador pode negar a incorrecção de um adjectivo, a violência de uma apóstrofe, quando a apóstrofe ou o adjectivo tenham aparecido nos resumos rápidos de outro jornal: nunca quando hajam aparecido nas colunas infalíveis do Times. Sabe-se a despesa, o desvelo, a minuciosidade empregada para obter a exactidão – e essa exactidão nunca é contestada.
Quando o Sr. Gladstone, na campanha eleitoral da Escócia, soltou essa famosa invectiva contra o império dos Habsburgos – o protesto cortês do embaixador da Áustria era fundado em citações do Times. Um orador que, querendo deixar um monumento sólido da sua arte, publique os seus discursos em volumes – colige-os do texto seguro do Times. O Times tem aqui o valor de uma reprodução fotográfica. Insisto nisto, para tomar mais vivo o horror da facécia.
Há semanas Sir William Harcourt, o ministro do Interior, fez um discurso em Manchéster, discurso considerável, muito anunciado, muito esperado, tocando todas as questões que inquietam agora a Inglaterra, a anarquia da Irlanda, o tratado de comercio com a França, a intervenção no Egipto, a criação do governo municipal de Londres, outras coisas graves ainda.
Esta arenga, taquigrafada pelo pessoal do Times em Manchéster, telegrafada para os escritórios do Times em Londres, foi composta, lida pelos revisores, revista pelo secretário de Sir William Harcourt, verificada, comprovada, relida ainda, e enfim, definitivamente instalada na sua página… E aqui se coloca a facécia.
Mas é necessário primeiro, para maior indignação e maior gozo, conhecer Sir William Harcourt. De todos os membros do ministério Gladstone, Sir William é o mais austero. Já a sua aparência intimida: grosso, membrudo, de ombros compactos, com a face imperiosa, pálida, rapada, Sir William tem as linhas solenes e marmóreas do busto de um César.
E dentro desta forma romana habita um espírito rígido de doutrinário: liberal (em comparação com o marquês de Salisbury, que é quadradamente feudal), Sir William representa no Governo a tradição, a fórmula whig. É o contrapeso conservador deste ministério radical: está ali como um bloco de granito constitucional para impedir que os outros ministros, Chamber1am, Sir Charles Dilk, os discípulos de Stuart Mill, se adiantem muito pela grande estrada da Revolução: e tem por isso essa ampla solenidade de maneiras, essa cadenciada pompa de expressão, de quem se honra em guardar as coisas supremas – a coroa, a Igreja, a aristocracia territorial, os privilégios, a integridade do império… E um solene. Mesmo abotoado no paletó parece embrulhado numa toga. E moroso, maçudo, incapaz de sorrir, tem essa espécie de majestade oficial que faz lembrar ao mesmo tempo Guizot e um elefante.
E quando a gente o contempla no Parlamento, grave, ríspido, vestido de negro – não o pode conceber nas atitudes triviais da vida, fumando um cigarro num sofá, com uma perna por cima da outra, muito menos de joelhos, com uma linda mão de mulher entre as suas, murmurando coisas ternas e tontas…
E é isto que torna atroz e deliciosa a facécia… O discurso solene deste solene estadista estava, pois, paginado, pronto para passar às máquinas, quando, aproveitando um momento em que a polícia interior dos escritórios do Times casualmente afrouxara de vigilância, alguém, um monstro, um celerado, subtilmente, pé ante pé, foi ao discurso, arrancou-lhe dez ou doze linhas e substituiu-as por outras, compostas de antemão, pérfida e habilmente compostas! E que linhas!, meu Deus! Como posso eu, conservando-me casto, explicá-las aos leitores da Gazeta de Notícias?

Essas linhas, intercaladas no severo discurso do severo ministro eram (tremo de dizê-lo), eram linhas eróticas! Era um grito convulsivo de desordenada lubricidade; era o ruído de uma besta agitada por todas as fúrias de Vénus; era como esse rouco e seco bramar dos veados, nos bosques, sob a calma do estio; era a balbuciação ébria dos faunos da fábula, do deus Priapo, dos sátiros caprinos que vagueavam pelos pendores sagrados do monte Olimpo, ululando, trincando a brancura dos lírios, violando o coração das rosas, arremessando-se com pulos ferozes de bodes ao entreverem, entre as ramagens dos olmos, as claras ninfas das águas… Era tudo isto, e era ainda mais.
E, para requinte de facécia, isto não destoava, não chocava, aparecendo bruscamente e sem ligação, como um monturo imundo entre róseas flores de retórica. Não, tinha sido encaixado com uma habilidade diabólica. Sir William Harcourt estava acusando os conservadores de afectarem uma patriótica melancolia em presença dos supostos perigos que sob o regime liberal correm os grandes princípios da ordem monárquica, a integridade mesma da Inglaterra. E aqui perguntava-lhes, naturalmente, num natural movimento de oratória: «Porque são esses gemidos? Porque é essa exageração de tristeza pública? Decerto a questão da Irlanda e a do Egipto são graves: mas o Governo de sua majestade sabe que as soluções proveitosas e gloriosas não tardarão… Nós estamos tranquilos. Eu, por mim, sinto-me na disposição de quem, depois de cumprir um dever oficial, tem para o recompensar o sorriso sereno e aprovador da consciência, etc., etc.»
E justamente aqui as linhas perversas entravam naturalmente traçadas, desenvolvendo mais esta afirmação de contentamento íntimo, mostrando a exuberância de espírito de um ministro galhofeiro, que, em presença do glorioso estado da coisa pública, admite que o regozijo da nação tome a forma excêntrica mas justificável de uma tremenda bambochata, de um regabofe de estalar tudo… Sir Wiliam prosseguia (compreendem bem que eu dou só expressões aproximativas; traduzir o que apareceu publicado no Times seria arruinar para sempre os créditos da Gazeta de Notícias), Sir William prosseguia: «Eu, por mim, estou contente. Acho-me até capaz de uma bela folia! Porque não nos daremos, com efeito, a uma rica patuscada, com vinhaça e mulherinhas? Oh, as mulherinhas! Senhoras que me escutais, arremessai chapéus e vestidos, e toca a pandegar e a bater um rico batuque!… Evohé! Viva o deboche! Olé, champanhe! Abracemo-nos, deliremos! Isto é só para dar ideia: o que se lia no Times tinha outra crueza de expressão, outro arranque de orgia!…
Imaginem o efeito ao outro dia, quando milhares de números do Times, contendo esta abominação, penetraram nesses recatados interiores ingleses, onde (segundo aqui dizem) habita o tipo superior da família cristã. O Times, o mais caro dos jornais, é a folha querida da aristocracia, da alta burguesia, da grande finança. Não se compreende um gentleman inglês, do padrão clássico, sem ter logo pela manhã percorrido conscienciosamente o seu Times: é como o coração mesmo da Inglaterra, que ele sente um momento entre as mãos e onde verifica cada dia, com orgulho, um acréscimo de força, uma pulsação maior de vitalidade. Ordinariamente é ao almoço que se lê o Times: e nessa manhã, vendo-se na quarta página, em letras grossas, o «Discurso de Sir William Harcourt em Manchéster», corria-se naturalmente a ele com curiosidade, já pelo interesse nacional, já pela simpatia que inspira Sir William, o seu nome histórico, a sólida pureza dos seus princípios, a sua alta posição…
Imaginem-se então as cenas! Aqui é uma velha e devota duquesa, cheia de entusiasmo pelas questões sociais, que se aconchega na sua rica poltrona de tapeçaria, para melhor saborear a nobre oratória de Sir William – e que de repente estaca, encara o Times, limpa as lunetas, imaginando ter lido mal, toma a percorrer o período, passa a mão trémula pela face, procura ansiosamente o seu frasco de sais, volta ainda a verificar se a não enleia uma alucinação e, arremessando enfim para longe a gazeta imunda, sai da sala a passos ofendidos, pensando consigo que são esses os resultado de um século de democracia, de materialismo e de libertinagem!
Além é um casal de noivos que, anichados no mesmo sofá ao pé do fogão, com os braços entrelaçados, percorrem o Times, menos para saber da questão no Egipto do que para ler o compte-rendu de outros casamentos elegantes ou as notícias de Paris, onde tencionam ir findar a sua lua-de-mel; mas encontram o discurso de Sir William, dão-lhe um olhar distraído, quando de repente lhes salta de entre as linhas o jorro imundo das apóstrofes eróticas!
Noutra casa é uma fresca e loura criaturinha de dezoito primaveras, puro lírio doméstico, que faz a leitura do Times a um velho tio general, tolhido de gota, relíquia veneranda das guerras peninsulares; o velho escuta, pouco atento à política do dia, que detesta, mas muito ao encanto daquela voz de ouro ao seu lado; de repente, porém, o pobre anjo gagueja, pára, faz-se da cor de uma rosa, treme, a sua vergonha é tal que lhe saltam as lágrimas dos olhos, e foge, deixando o imundo Times nas mãos do general assombrado, ou então, caso pior, a doce rapariga, na sua candura de flor de estufa, não compreende, imagina que aquilo é política, continua a ler com a sua voz de ouro – e o venerável tio ouve de repente sair dos lábios de botão de rosa, feitos só para murmurar o que há de mais casto na música de Weber, um enxurro torpe de babuges lúbricas.
É medonho! E uma feição curiosa do incidente é que este negro atentado só foi descoberto nos escritórios do Times às onze horas da manhã: isto é, quando o jornal já estava distribuído em Londres, levado pelos trens de madrugada para toda a província e pela mala de Dover para toda a Europa! A administração do Times telegrafou logo a todos os seus agentes no mundo, para suspender a distribuição e comprar por todo o preço os torpes número já espalhados.
Só estes telegramas custaram perto de dois contos de réis. Mas o melhor é que apenas se soube a história da catástrofe, e que o Times comprava por todo o preço o número maldito – esse número tomou-se logo um valor, um papel de crédito, base de especulação, com cotações no mercado iguais, se não superiores, aos fundos de muita nação civilizada. Eu sei de um restaurante que toma regularmente quatro número do Times – e que vendeu os seus exemplares imundos a duas libras cada um.
Realizaram-se, porém, ganhos maiores, O Times não regateia, paga. E até hoje diz-se que em comprar essa fatal edição tem gasto já perto de quarenta contos.
O autor da facécia ainda se não descobriu. E, sem dúvida, um monstro e seriamente merece a tremenda sentença com que decerto os tribunais ingleses o demoliriam. Mas, por outro lado, considerando que quarenta contos são apenas um soma mínima para a fortuna do Times e que esta gazeta austera leva o seu pedantismo e a sua empolada pruderie a sustar, como obscena, a menção sequer dos livros de Zola e de outros artistas – eu não posso deixar de pensar, com laivos de regozijo, que a Providência tem armas oblíquas e terríveis!
Nunca, decerto, desde a invenção da imprensa, aconteceu um jornal publicar, na sua melhor página, em letras salientes, doze linhas imundas de desbragada obscenidade; e ser o Times o primeiro que o fez, o Times, o mais pesado, mais moroso, mais solene, mais pedagógico, mais reverente de todos os jornais que têm existido desde a invenção da imprensa – é, digam o que disserem, divertido.
E, terminando, peço às almas caritativas e justas uma boa risada à custa do Times.